A voz grita dentro de nós, a batida pulsa em compasso com o peito, o violino arrepia todo nosso ser e, assim, estamos entregues. Com um fundo preto e composição visual minimalista, foi que conhecemos a banda Mulamba, formada por Amanda Pacífico (voz), Cacau de Sá (voz), Caro Pisco (bateria), Fer Koppe (cello) e Naíra Debértolis (baixo). “P.U.T.A.”, lançada em 2016, foi a produção delas com mais exposição na internet. Cantando sobre estupro, a faixa é forte e nos traz a sensação do medo vivido por milhares de mulheres todos os dias nas ruas, ao mesmo passo que nos dá força para encarar o mundo.
E elas ainda nos mostram outra faceta. Faixas como “Provável Canção de Amor para Estimada Natália”, “Interestelar” e “Desses Nadas”, são leves, gostosas de ouvir e falam sobre o sentimento mais conhecido: amor. Essas músicas estão disponíveis nas plataformas de streaming em versão ao vivo para o Showlivre.
Criada em Curitiba, em 2015, a banda é na verdade do Brasil inteiro. Com cada integrante de um lugar do país, elas se encontraram para dar voz si mesmas e a outras brasileiras. “De algum lugar do planeta, sentíamos que não éramos só uma. Éramos muitas e precisávamos fazer com outros braços a mudança que queríamos na nossa sociedade. A música fez isso por nós”, diz Amanda Pacífico, que aceitou dar uma entrevista para gente.
E juntas fizeram o clipe de “Mulamba”, lançado na metade do ano passado, que deixa ainda mais clara a importância que elas dão para ouvir e serem ouvidas. “Nós tivemos um preparo com a psicóloga Lari Tomass, pois sabíamos que íamos encontrar algo muito delicado e intenso pela frente. Não conhecíamos as mulheres que iam participar até o momento da gravação. Abrimos aquela roda que aparece no clipe e fomos nos conhecendo, trocando e nos emocionando de fato com as histórias umas das outras. Foi um momento de entrega de todas ali, uma sensação única de deixar sair amarras, pesos e culpas. Foi um abraço por dentro”, conta.
A reunião e a união delas em vídeo só deixou ainda mais clara a vontade de participar de encontros com mulheres, criar mais fontes de debate sobre a violência contra a mulher e aprender sobre os diferentes temas que envolvem o universo feminino de causa. “Queremos mais para frente criar um canal, mas entendemos que é necessário o acompanhamento de mulheres profissionais esclarecendo as dúvidas sobre os temas”.
E é válido que o façam, já que a banda recebe diariamente mensagens e pedidos de ajuda de mulheres em suas páginas e redes sociais. A comunicação entre público e musicistas é também o que as alimenta. Os desabafos às vezes se transformam em letras que voltam ao mundo em forma de música, e o grito melódico é o que dá voz a todos esses apelos. “Sentimos que as coisas têm mudado. A maioria dos relatos é de agradecimento por ter alguém por elas, por sentir amparo, por ter tido coragem de agir e sair de um silêncio. Claro que ainda é pouco, têm muitas meninas nos becos, aprisionadas e sem voz. Mas temos uma arma que reverbera mais e mais. Cada dia os becos florescem e a sensação de impotência dá lugar a semeadura” diz a vocalista.
Esse grito das letras nas músicas, a “urgência de ser ouvida e respeitada”, também é o responsável por toda a energia da banda em cima do palco. Elas, que estão fazendo muitos eventos ao lado da Francisco El Hombre, chamam atenção de quem as vê em seus shows, tanto pela força de suas músicas, quanto pelos movimentos que elas adentram.
É o caso do “Free the nipple”, movimento que a Fer Koppe, violoncelista, adere em alguns shows. Questionada sobre o motivo de um mamilo ainda gerar tantos comentários, Amanda fala sobre como o corpo da mulher sempre foi colocado como objeto de prazer: “A mulher foi criada para estar linda, limpa e pronta para servir. Hoje, nós questionamos isso nos nossos shows e nas nossas rodas de conversas entre amigos. Buscamos tantas coisas sobre a nossa independência intelectual, financeira, emocional, então que isso comece no nosso próprio corpo. Esperamos e lutamos para que chegue um dia em que não nos digam o que vestir, quando parir ou para quem dar. Que nosso corpo seja só nosso”.
“Nascer mulher é descobrir a necessidade de se fazer ser vista. É estar em constante desconstrução dentro de uma sociedade que nos impõe e nos testa. Sempre cito o exemplo da minha mãe que, como muitas outras mulheres, fez duas faculdades, trabalhando de dia e estudando a noite, deixando a criança pequena em casa, mesmo ouvindo críticas da família patriarcal. Isso é ser feminista e nem as vezes saber. A Mulamba só relatou as dores de mulheres silenciadas e abusadas, gritou ao mundo cenas do nosso cotidiano. Se isso configura ser feminista, somos”.
A inspiração artística delas fica ao alcance dos olhos quando pensamos em outra mulher tão revolucionária quanto. Cássia Eller, cantando as músicas que queria, do jeito que queria e usando a estética pessoal como ela queria, tinha um talento tão imensurável quanto o delas. A cantora, porém, é mais que inspiração, é o motivo de estarem juntas. A banda foi formada graças ao tributo à Cássia Eller que fizeram juntas no dia 10 de dezembro de 2015 (aniversário de Cássia). E é por isso, também, que Amanda gostaria de agradecer a cantora: “Muito obrigada por fazer por nós. Por afrontar o mundo com a tua arte e mover o caminho para que possamos só ser hoje”.
E embebidas em inspiração, a Mulamba anuncia um álbum para 2018, o seu primeiro. Contempladas pelo OpenMic do Vento Festival [evento que acontece todos os anos no litoral de São Paulo], a banda conseguiu, graças ao apoio de seus fãs que votaram 10 mil vezes nelas, tocar no festival e ainda gravar o álbum no estúdio da Red Bull em São Paulo. “Vamos gravar em março e já, já vem o disco por aí! Aguardem que vem pedrada”, conta.
A Mulamba, ambas mulher e banda, continuarão levando suas mensagens para o Brasil. Ela, ainda que machucada, segue a caminhar por suas conquistas e a lutar por sua independência e liberdade. É o que esperamos para elas, assim como para nós mesmas. “É o início de um movimento. Tudo no nosso trajeto aconteceu sem planejar. O universo se encarregou de nos presentear com muita gente que soma. Queremos gravar o álbum e andar pelo mundo. Conhecer almas e trocar experiências. Vislumbramos, sonhamos e imaginamos uma grande onda de união e de mudanças vindo por aí. É só o começo”, finaliza Amanda.
Veja também a matéria com 5 mulheres que atuam com música.