Show de 8 episódios é estrelado por Patrícia Arquette, Chloë Sevigny e Joey King
Se existe algum ranking de séries que mais dão dor de cabeça às suas equipes jurídicas, “The Act” provavelmente leva o pódio – o show mal estreou nos Estados Unidos e já promete levar a plataforma de stream Hulu e a co-criadora Michelle Dean aos tribunais – Gypsy Rose Blanchard, cuja história é revelada na trama de 8 episódios, alega não ter dado consentimento para ter sua vida transformada em série, além de não ter recebido um centavo da Hulu pela exposição.
“The Act” é baseado em uma das histórias mais surreais descobertas pelo jornalismo investigativo norte-americano, que abalaram a fé na humanidade de muita gente lá no começo dos anos 2000.
Confira a história real na qual o show foi baseado!
Dee Dee e Gypsy Rose Blancharde
Dee Dee Blancharde e sua filha Gypsy Rose Blancharde viviam em uma casinha cor de rosa em Springfield, no Missouri. Dee Dee, originalmente da Louisiana, fugira de seu estado natal há alguns anos para proporcionar à pequena Gypsy uma vida longe de sua casa – segundo ela, o ápice havia sido o dia em que seu pai, o avô da menina, queimara Dee Dee com um cigarro. Ao ser questionada sobre o pai da criança, ela afirmava que ele nunca fizera parte da vida da filha por ser usuário de drogas e conhecido na cidade por uma série de golpes.
Dee Dee é descrita pela família e os amigos do Missouri como extremamente gentil, prestativa e atenciosa, principalmente quando o tema era o bem estar de sua filha: Gypsy nascera com um tipo raro de distrofia muscular e uma anomalia cromossômica que prejudicavam sua visão e limitavam seus movimentos, obrigando-a a se locomover numa cadeira de rodas, além de estar lutando há algum tempo contra um tipo particularmente agressivo de câncer, cujo tratamento a fizera perder completamente os cabelos. Em decorrência desses problemas de saúde, Dee Dee não trabalhava, afirmando que cuidar de Gypsy Rose era uma ocupação que exigia sua dedicação em tempo integral, uma vez que a jovem nem conseguia frequentar a escola, por não conseguir se deslocar ou mesmo se alimentar sozinha, precisando que a comida fosse enviada diretamente a seu estômago por um tubo.
Apesar do cenário adverso (para dizer o mínimo), a dupla era bastante sorridente, e comovia a população da cidade pela capacidade de manter a alegria mesmo numa situação extrema como essa: Dee Dee usava seu tempo livre para projetar filmes em seu jardim para as crianças sem dinheiro para ir ao cinema, vendendo refrigerantes e pipoca a preços baixos – o lucro ia para os tratamentos e para satisfazer os caprichos de Gypsy, que gostava de se vestir como princesa, tinha uma coleção invejável de gorros e chapéus e era constantemente mimada pela mãe. Essa superproteção podia beirar a paranóia – sempre que alguém tentava começar uma conversa com Gypsy Rose, era interrompido por Dee Dee, que afirmava que a idade mental da filha adolescente era de apenas 7 anos.
O sofrimento corajoso enfrentado pelas Blancharde lhes rendia uma verdadeira reputação na cidade, além de algumas regalias: a casa em que elas moravam fora um presente de uma ONG chamada Habitat for Humanity, que cede casas para pessoas carentes e/ou que não tenham condições de trabalhar. O lar era completamente equipado com rampas e uma banheira de hidromassagem, para ajudar Gypsy em sua recuperação. Além disso, a dupla era frequentemente vista em programas de auditório cujo tema era superação.
That bitch is dead
O mundo de fantasia construído pelas Blancharde começou a desmoronar com um post misterioso na conta de Facebook que elas compartilhavam:
Imediatamente choveram questionamentos sobre o perfil ter sido hackeado, e telefonemas sem resposta feitos por um casal de amigos das Blancharde os levaram a dirigir até a casa e entrar por uma janela. Lá, encontraram o corpo de Dee Dee, morta por esfaqueamento. De Gypsy Rose, nem sinal.
Começou então uma busca frenética para o que se acreditava ser um caso de assassinato seguido de sequestro – a polícia estava particularmente apressada por constatar que Gypsy estava sem sua cadeira de rodas e sem sua medicação, de maneira que provavelmente não teria muito tempo de vida em cativeiro. A partir daí, surgiram alguns depoimentos que começaram a pintar um retrato um pouco diferente da vida familiar de Dee Dee e Gypsy.
Aleah, filha de uma das vizinhas da casa cor de rosa, revelou que era bastante próxima de Gypsy via redes sociais, e que elas se comunicavam através de um perfil fake, com o nome de Emma Rose, criado por ela para escapar do olhar controlador da mãe. As conversas giravam em torno de garotos, tema um tanto quanto estranho se considerarmos que a idade mental de Gyspsy era de 7 anos. Em seu depoimento, ela mostrou conversas em que Gypsy contava ter conhecido seu príncipe encantado, um homem de 24 anos chamado Nicholas Godejohn, que era cristão como ela e não se importava com seus problemas de saúde. O empecilho para o romance desabrochar era Dee Dee, que não permitia que a filha tivesse contato com ninguém de fora de seu limitado circulo social. Na época, Gypsy já tinha 18 anos.
A casa caiu quando Dee Dee descobriu uma das conversas entre Aleah e sua filha, o que resultou com o computador e o celular de Gypsy sendo confiscados. As informações fornecidas por Aleah levaram a polícia à casa de Nicholas, onde Gypsy foi encontrada viva e bem.
As coisas começaram a se esclarecer quando a menina foi vista andando, sem precisar de óculos e com os cabelos começando a crescer.
A verdadeira história de Gypsy Rose
O alívio da polícia foi substituído por suspeita quando foi constatado que Gypsy Rose estava ali por livre e espontânea vontade, e parecia muito distante da imagem de garotinha vitimizada retratada por vizinhos e pela mídia do Missouri. Ao ser pressionada pela policia, ela acabou confessando ter orquestrado o assassinato da mãe. Em seu relato, ela afirma ter sido refém de Dee Dee por anos, mantida presa e obrigada a tomar medicamentos que a deixavam grogue e incapaz de se comunicar direito, além de ter o cabelo sistematicamente raspado para aparentar ter um câncer raro.
A investigação da polícia corroborou a versão dos fatos contada por Gypsy Rose: Dee Dee Blancharde na verdade se chamava Claudinne Blanchard, e havia usado vários nomes como Dino, Dee Dee e Claudinea no decorrer da vida (a letra ‘e’ no final do sobrenome foi acrescentada pela própria Dee para dificultar sua identificação). O pai de Gypsy se chama Rod Blanchard, e ainda mora na Louisiana. Eles se conheceram quando ele tinha 17 anos e ela 24. Dee Dee engravidou após seis meses de namoro, e o próprio Rod sugeriu o casamento. A relação azedou após poucos meses, e apesar das tentativas de reconciliação de Claudinne, eles nunca voltaram a ficar juntos. Entretanto, ao contrário do que Dee Dee alegava, Rod não tinha nenhum problema com drogas, pagava pensão e era tão presente na vida da filha quanto a ex-esposa permitia – como prova, ele apresentou à polícia diversas fotos dos dois juntos em diversas ocasiões.
Segundo Rod Blanchard, Gypsy Rose nasceu absolutamente normal, entretanto Dee Dee tinha na cabeça que havia algum problema de saúde com a filha. Quando ela tinha 3 anos, ela estava aficionada com a ideia de que Gypsy tinha apneia do sono. A partir daí, as descrições de doenças começaram a se multiplicar, muito embora nenhum médico tenha encontrado nada de errado com a criança – que chegou a ser submetida a cirurgias sem necessidade, em função dos sintomas inexistentes descritos pela mãe – Dee Dee trabalhara por algum tempo como assistente de enfermagem, e se orgulhava de conseguir refutar os questionamentos feitos pelos médicos de forma contundente.
Em 2005, a cidade em que a dupla morava foi atingida pelo furacão Katrina. Dee Dee aproveitou a oportunidade para se mudar para o Missouri, usando o furacão como pretexto para conseguir uma nova casa e justificar não possuir o histórico médico que comprovasse as doenças da filha. Entre 2005 e 2008 elas moraram em casas do governo, até receberem o lar cor de rosa de presente.
No aniversário de 18 anos de Gypsy, Rod ligou para dar os parabéns, e quem atendeu o telefone foi sua ex esposa. Ela avisou ao marido que a filha não sabia que estava fazendo 18 anos, e que pensava estar fazendo 14 (sim, quando o assassinato foi cometido Gypsy Rose na verdade tinha 23 anos). Confuso, Rod acabou entrando no jogo, e seguiu enviando a pensão alimentícia mesmo depois dela atingir a maioridade – ele afirma não ter ideia das doações que as duas recebiam.
Em sua confissão, Gypsy afirma que combinou com o namorado o assassinato da mãe – ele chegou a Springfield, recebeu uma faca e luvas e a assassinou enquanto dormia. Na sequência, o casal roubou milhares de dólares que a mãe mantinha num cofre – fruto de anos de ajuda governamental para remédios dos quais a filha não precisava; enviou a arma do crime pelo correio para Wisconsin e pegou o ônibus para a casa de Godejohn.
Muito embora não tenha participado ativamente do assassinato da mãe, Gypasy foi sua idealizadora, além de ter facilitado sua entrada na casa e lhe oferecido as armas para cometer o crime. Ela se declarou culpada por assassinato em segundo grau, sendo condenada a 10 anos de prisão. Godejohn, por sua vez, foi condenado a 25 anos de cadeia.
Com o lançamento de “The Act”, o caso já tem retomado as manchetes dos tabloides norte-americanos, que voltam a trazer a baila até que ponto o assassinato cometido por Gypsy não pode ser considerado legítima defesa. Afinal, antes de ser morta pela filha, Dee Dee sua vida por 23 anos.