*por Kíssila Machado
A continuação do clássico de Ridley Scott chega cheia de expectativas e não decepciona ao expandir o mundo dos replicantes.
Blade Runner – O Caçador de Androides chegou aos cinemas em 1982 sem muito estardalhaço e saiu como fracasso de público. Sua continuação, Blade Runner 2049, não corre esse risco: após o original atingir o status de clássico cult na década de 1990, o filme entra em cartaz cercado de expectativas e alardeado como um dos mais aguardados do ano.
A trama se passa 20 anos após o longa de Ridley Scott, quando a Wallace Corporation criou novos modelos de replicantes mais eficientes e mais facilmente controlados pelos humanos. Somos apresentados ao agente K (Ryan Gosling, que leva o nome em clara referência a Philip K. Dick, autor do livro que serviu de inspiração ao primeiro filme), um replicante que caça modelos velhos foragidos da justiça. Um caso aparentemente corriqueiro acaba empurrando K num buraco de coelho, onde uma conspiração leva o personagem a questionar suas origens e identidade.
O filme acerta ao continuar e expandir os questionamentos filosóficos que transformaram seu predecessor em clássico sci-fi, focando na busca dos androides por continuidade através da procriação, na importância da memória para a identidade do indivíduo, e no valor da vida (seja ela orgânica ou sintética) – embora no final deixe a sensação de que nem tudo foi realmente resolvido, sem dúvida preparando caminho para uma inevitável sequência.
Os fãs do original não devem sair decepcionados com a participação de Harrison Ford como um envelhecido e sem esperanças, Deckard, além de uma breve aparição em CGI de sua amada Rachel (Sean Young). Já a jornada de autodescoberta de K é uma de fácil identificação, remetendo a momentos cruciais que parecem corriqueiros, mas acabam se firmando como uma quebra de paradigma em nossas vidas, redefinindo nossa própria identidade. Gosling carrega com facilidade o manto do protagonista atormentado, que leva seus dias numa rotina pálida entre o trabalho e Joi, a inteligência artificial holográfica que faz as vezes de namorada (Ana de Armas, numa ótima performance que lembra Scarlett Johansson em Ela) e apoio emocional, mas apenas o lembra da sua própria artificialidade e anseio por uma conexão real.
Aliás, as mulheres de Blade Runner 2049 são muitas e merecedoras de atenção, com ótimas atuações de Armas, Sylvia Hoeks (como a replicante mortal Luv), e Robin Wright (como a Tenente Joshi, chefe de K), que merecia uma participação maior. Carla Juri (Amaldiçoada) também aparece bem como a Dra. Ana Stelline, responsável por criar as memórias implantadas nos replicantes, e a israelense Hiam Abbass (Êxodo: Deuses e Reis) rouba a cena e deixa um gostinho de quero mais como a líder da rebelião replicante. Fechando a conta, a ótima Mackenzie Davis (da série Halt and Catch Fire) interpreta Mariette, uma prostituta que cruza o caminho de K e Joi. A ressalva é que, embora apresente muitas personagens femininas consideradas fortes, a produção as apresenta apenas como bonecas unidimensionais que não servem a trama de outra maneira a não ser como suporte dos homens. Em momento algum fica claro se tal tratamento é dado para refletir um futuro que continua misógino e desigual, ou se é apenas um reflexo da falta de mulheres por trás das câmeras (o filme é dirigido, escrito, e produzido apenas por homens).
Já a direção do canadense Denis Villeneuve (A Chegada) paga tributo a Ridley Scott ao reproduzir a atmosfera neo-noir, sombria e chuvosa do original, ao mesmo tempo em que cria sua própria textura, pontuando a paisagem com tons de branco, cinza e amarelo que deixam o visual com um chiaroscuro primoroso (quem viu A Chegada, trabalho anterior do diretor indicado ao Oscar 2017, deve perceber a semelhança entre o contraste de luz dos dois projetos). Créditos também para Roger Deakins, diretor de fotografia considerado hoje o melhor do ramo em Hollywood, que empresta sua visão ao filme.
Apesar do status de blockbuster, Blade Runner 2049 não é uma experiência para todos. Com quase 3h de duração, a produção mantém o aspecto reflexivo e lento do original, chegando a ser arrastado e cansativo em alguns momentos. Quem for ao cinema esperando sequências intermináveis de ação e pancadaria vai sair decepcionado. Não que cenas assim não existam, mas são pontuadas e eficientes no mar de contemplação filosófica que o filme apresenta. Fica a sensação de que um corte menor faria um filme mais sucinto e redondo, embora este seja um problema facilmente contornável para aqueles que buscam algo mais que uma simples diversão passageira.
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