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A arte para ser vivida – e ouvida – de Craca e Dani Nega

Com uma banda que inspira diversidade cultural, o duo de música eletrônica e rap, transcende qualquer rótulo

“Craca, Dani Nega e o Dispositivo Tralha” é como você vai encontra-los na ferramenta de streaming, Spotify, em álbum lançado no ano passado que conta com 11 faixas. As músicas desse duo que se encontrou quase que por acaso, contam uma história peculiar de um encontro musical e artístico.

Craca é argentino, veio para o Brasil com um ano no colo de seus pais, fugindo da ditatura militar que estava em curso no país. É produtor, músico, já foi professor da Anhembi Morumbi e possui projetos que mistura artes visuais e música de tradição. Craca conheceu a Dani Nega em um projeto de música e literatura. Ele tocando música eletrônica, ela colocando suas letras fortes com discurso social e político.

A partir do encontro dos dois e do encaixe do som dele com a letra dela, decidiram que queriam continuar a parceria e aprofundar o trabalho musical. “O Craca sempre foi muito respeitoso com meu discurso, meu depoimento. Nunca questionou nada. Até porque ele entende os lugares diferentes em que estamos. Eu, mulher negra e lésbica. Ele, homem branco e hétero. Então, o protagonismo do discurso fica por minha conta”, diz Dani.

Dani Nega chegou a ter uma banda antes de conhecer o Craca e, além disso, possui também um trabalho como atriz e foi exatamente fazendo ambas as coisas que ela começou a encontrar sua voz e sua expressão. “De onde eu venho o rap é trilha sonora no dia a dia das pessoas. Eu nasci e fui criada em um bairro periférico na extrema leste de São Paulo. Sempre ouvia rap no Espaço rap (programa de rádio) sentada na calçada de casa com minhas primas. Comecei a cantar rap em uma banda chamada 1° Ato. Uma banda de amigos que estudavam na ELT (Escola Livre de Teatro) que era formada por atores e rappers”, conta a MC e atriz.

A música de Craca e Dani Nega se complementa não só no âmbito sonoro, mas também na arte visual. A importância da arte visual que o Craca dá para a sua formação como artista é visível nos shows do duo com projeções e video mapping. E é dessa forma que o trabalho deles abre espaço para um novo conceito de música, performance, rap e evidencia a importância social do rap feminino.

Foto: Divulgação

Confira a entrevista completa:

E.T.C.: Dani, você também é atriz. Como você acha que essa carreira agregou para você na carreira como MC?

D: Pegar o microfone e contar sua trajetória ou denunciar o espaço onde se vive, não é uma tarefa fácil. É preciso que o outro escute, entenda, se encante, reflita, se identifique e se sinta representado. Acredito que o teatro tenha muitas ferramentas para ajudar nessas narrativas. Seja para construir uma dramaturgia interessante, seja para dar corpo aos personagens dessas histórias.

E.T.C.: Qual foi a primeira impressão que teve ao fazer música com o Craca?

D: Desde a primeira vez que vi o Craca com toda a sua tralha eletrônica, eu fiquei encantada. Ficava pensando: ‘como é que o cara fez tudo isso? Ele deve ser um monstrinho do eletrônico’. Sempre achei o som muito interessante e de muita qualidade. Acho que sempre me coloquei como uma aprendiz nesse encontro.

E.T.C.: Craca, você utiliza aparelhos eletrônicos para tocar, como você enxerga a importância da inserção da tecnologia na música tradicional?

C: Formei-me na faculdade de música de uma maneira tradicional, mas a partir de um certo momento comecei a me interessar pelo eletrônico, tanto o que conhecemos amplamente, quanto a música eletroacústica que vem da música erudita. A música eletrônica proporciona ao ouvinte uma experiência sensorial deslocada do que ele está acostumado e isso permite um diálogo da música com a arte contemporânea.

E.T.C.: Sobre as letras, vocês discutem as letras ou fica por conta da Dani?

C: Nós sempre discutimos um pouco as letras até porque elas apontam posturas políticas e, apesar do texto estar muito vinculado a ela, como eu toco essa música, acabo por ter que assumir o discurso. Mas, eu não escrevi nenhuma linha, elas são todas dela e eventualmente discutidas, debatidas e editadas comigo.

E.T.C.: Como você enxerga o rap feminino e o alcance externo que ele tem?

D: O alcance midiático que o rap feminino tem é muito pouco. O preconceito e o machismo ainda são muito grandes. O papel da mulher para algumas instituições ainda é o da sensualização e submissão. Parece que a voz feminina não pode ser politizada. Acho que essa potência de discurso e de voz está sendo muito mais presente nos saraus, nos slams, nas produções mais independentes do que na mídia de grande alcance. Mas estamos chegando aos pouquinhos. E muito bem representadas.

E.T.C.: Você acredita ser importante para as pessoas da periferia ter uma música para chamar dela?

D: Sim. Precisamos de representatividade. De espaços para falarmos da gente e contarmos nossas histórias.

C: Sim, acredito que talvez essa seja uma das coisas mais significativas no cenário musical atualmente. Tem um movimento de afirmação feminina, feminista, trans, negra; muito grande e é fundamental que o protagonista desse discurso seja a principal vítima desses sistemas. Antes da internet, nós tínhamos um sistema de distribuição de música que era “elitista burguês”, sem exageros! Era música popular, para grandes massas, mas feita por pessoas que de alguma forma não eram diretamente os representantes dos fatos. Agora quem está falando sobre racismo é realmente quem é vítima disso todo dia. Em suma, com a superação desse sistema antigo, todo mundo ganha voz.

E.T.C.: Vocês acreditam no poder do rap e da música em geral para abrir os olhos para esses tipos de temas? E acreditam que seja possível a música ocasionar a mudança nas pessoas?

D: A arte, para mim, precisa curar. O artista precisa questionar e denunciar o espaço em que ele vive. Se não for isso, não me interessa. Então eu acredito sim.

C: Essa mudança seria a essência de algo para me conduzir artisticamente, mas é difícil converter pessoas. Porém, considero importante que as pessoas se incomodem com o meu discurso, com o da Dani, com o dos trans, dos negros…. Essa incomodada que o artista tem a missão de dar nas pessoas, vai mostrar que há diferentes visões e pensamentos no mundo e que nada é consensual. Mas, por outro lado, também acredito que em momentos onde o ódio está menos a flor da pele, figuras como um Chico Buarque, que apaixonam as pessoas com sua música, acabam por trazer dados da realidade que elas a princípio negligenciariam.

E.T.C.: Quais são os artistas brasileiros que mais influenciam o trabalho de vocês?

D: Nossa, são tantos. A Jucho, os grupos de teatro negro e a mulheres negras tem me influenciado mais. E acompanho também as poetas como a Luz Ribeiro e  Mel Duarte; e as cantoras Tássia Reis e a MC Carol.

C: Talvez por me sentir muito latino americano, tenho mais referências desses países. Como o “Bomba estereo” e o “Sistema solar” que é um movimento musical muito importante e significativo. Na música brasileira, o que me referência é a música negra de tradição, a nordestina, a MPB – apesar dela ter uma narrativa menos significativa hoje em dia – e, claro, a música eletrônica brasileira que estão produzindo na cena underground daqui de São Paulo, na Paraíba. Acredito que é uma cena que vai deixar um legado para os próximos anos.

E.T.C.: Vocês fariam parceria com bandas ou artistas de outro estilo musical que vocês? Acreditam na união entre os artistas para fortalecer a música?

D: Sim. Desde que tenhamos uma afinidade de pensamento.

C: Sem dúvida alguma. Até porque acho que não vai ter muita gente parecida com a gente também, né?! Rs. Na nossa própria banda tem músicos que tocam em projetos completamente diferentes, então já somos distintos entre nós mesmos. E, como não me interesso por uma única cena, o que nos resta é o mundo todo. E nisso incluo não só a música, mas também vários outros tipos de arte. Se eu não estiver conectado a outras artes e ciências, não dou conta de tudo que tenho a dizer. Temos que estar conectados a artistas em geral!

Escute o disco completo:

 

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